Bará, de Gustavo Nazareno, é uma série com cerca de 400 desenhos em carvão que, juntos, criam uma dança, uma cerimônia em homenagem a Exu, em sua qualidade de “senhor do corpo”. Este é o cerne do primeiro livro de Nazareno, lançado pela Act. Editora, com apoio da Portas Vilaseca Galeria. Com acabamentos requintados e design cuidadosamente pensado para reverenciar o Orixá que guia e protege o artista, a publicação homônima reúne por volta de 120 trabalhos da série. Nazareno destaca a dedicação e o envolvimento com a obra:
“É toda a entrega de uma oferenda para Exu, algo muito importante para mim. Este livro é minha vida no momento, estou entregue a ele, meu coração está entregue”.
Autodidata, Nazareno vem desenvolvendo uma produção guiada pela pintura a óleo e pelo desenho em carvão, cuja prática é influenciada pelo panteão iorubá afro-brasileiro. Exu, em sua qualidade de Bará, é uma das entidades centrais para o artista mineiro de Três Pontas. Partindo de um minucioso estudo da anatomia humana e de investigações em torno das poéticas e políticas do corpo, ele articula também referências que transitam pela iconografia renascentista e barroca, bem como pela história da moda e seus desdobramentos contemporâneos. Para o curador e pesquisador alagoano Deri Andrade:
“Quando utilizado com certa intuição, o carvão é uma extensão da mão do artista. Seu gesto confunde-se com o do próprio lápis. Segundo Nazareno, o material surge quase como um chamamento, o que ratifica o fato de a série ser uma encomenda, produzida em transe. São nesses contatos que ele encontra conforto para estar próximo a Exu, inebriado pelas histórias que escuta do orixá e por sua proximidade com este.”
Espécie de mentor de Nazareno, o curador estadunidense Danny Dunson, diretor de assuntos curatoriais do The DuSable Black History Museum and Education Center, em Chicago, também contribuiu para a publicação:
“Ousado, lírico, envolvente. Foram as palavras que surgiram em minha mente quando me deparei com o trabalho de Gustavo Nazareno. As primeiras imagens que vi foram da série Bará, obras criadas com as pontas dos dedos do artista, com pó de carvão sobre papel. As camadas de profundo contraste entre preto e branco, dando corpo a espaços de sombra e luz, positivo e negativo, tinham uma aparência ao mesmo tempo fotográfica e pictórica.”

E na Philos você lê com exclusividade o ensaio “Bará, uma dança”, de Deri Andrade:
Bará, uma dança
No fundo opaco do papel branco que marca uma silhueta em contraste, observa-se um movimento que dita suas próprias regras. A partir do carvão como matéria-prima, os desenhos da série Bará evocam um estado de coreografia estática, o que nos permite imaginar figuras, gestos e traços em simbiose, partes de um transe contínuo.
Ao sustentar na base da matéria sua própria unicidade, cada desenho busca evocar momentos únicos, que, quando postos em diálogo, estabelecem suas relações a partir de uma oferenda. São instantes esculpidos com toda a dureza do preto fosco do pó de carvão, mas que formulam contornos, contrariando qualquer imposição ao se colocarem em constante movimento de dança.
Bará, título que faz referência ao orixá de mesmo nome, se inicia a partir de uma oferenda para Exu em desenhos desenvolvidos pelo artista Gustavo Nazareno como rituais para a prosperidade, em uma troca direta com a divindade. Nas religiões de matriz africana no Brasil, Exu é o orixá que vem primeiro, que está no entre, nas frestas e nas lacunas entre o divino e o terrestre – é como se nas imagens construídas pelo artista esse espaço intermediário fosse ressaltado pelo contraste entre as cores empregadas nas silhuetas do preto sobre o branco. Aqui, essa constante interlocução está embrenhada no toque do carvão com o papel. Assim como a comunicação é fator presente na divindade, a série convoca o espectador a mergulhar por suas sutilezas, em um processo de diálogo constante com quem a observa. Desse modo, a facilidade de acesso à imagem forja uma nova maneira de observarmos a obra em questão, uma vez que essas nuances estão postas nos detalhes. Outra característica marcante de Exu Bará, ou “o senhor do corpo”, é o poder do hibridismo, sendo feminino e masculino a um só momento.
Segundo José Mariano Carneiro da Cunha, as primeiras estatuárias de Exu de que se tem conhecimento no Brasil são datadas das últimas décadas do século XIX. Em madeira e ferro, essas peças denotam certa estilização, atribuindo traços “humanizados” ao orixá. Aqui, Nazareno dá contornos figurativos aos desenhos, realçando essas características humanas, mas sem perder o que está oculto nessas mesmas propriedades dúbias.
Este trabalho nasce a partir de referências coletadas pelo artista desde a adolescência, quando é despertado seu interesse pela anatomia humana enquanto ponto fulcral de seu desenvolvimento artístico. Ao mesmo tempo, os estudos em história da arte possibilitam uma maior gama de compreensão sobre as técnicas escolhidas. Natural de Três Pontas, em Minas Gerais, foi por meio da Arte Sacra vista nas igrejas mineiras que se deu seu primeiro contato com o universo das artes. Esses cruzamentos são base para sua produção, que passa pelo desenho e pela pintura, com ênfase nas telas a óleo. Dessas relações entre estudos biológicos e artísticos, surgem trabalhos empregados de minuciosa técnica. Nazareno comenta sobre a importância do uso do lápis comum em sua trajetória, material que pavimentou o caminho até o método que posteriormente se transformaria em Bará. Ao desenhar com lápis durante os primeiros contatos com a arte, ainda muito jovem, o artista percebeu ali uma forma de aprofundar suas pesquisas nos anos subsequentes. O que era uma curiosidade transformou-se em apurados desenhos, criados a partir da maneira com que lida com o carvão mineral. Material poroso que borra a superfície na qual é utilizada, é dominado pelo artista justamente nesse ponto, ao permitir a criação de nuances e movimentos.

Quando utilizado com certa intuição, o carvão é uma extensão da mão do artista. Seu gesto confunde-se com o do próprio lápis. Segundo Nazareno, o material surge quase como um chamamento, o que ratifica o fato de a série ser uma encomenda, produzida em transe. São nesses contatos que ele encontra conforto para estar próximo a Exu, inebriado pelas histórias que escuta do orixá e por sua proximidade com este. Além das menções que faz da arte produzida no país, Nazareno tem realizado estudos sobre a Arte Moderna Makonde, com base nas leituras do emblemático livro homônimo de Jorn Korn, de 1974. Na publicação, Korn investiga a produção artística da África Oriental, mais precisamente dos povos Makonde do norte de Moçambique e do sul da Tanzânia. As peças dos artistas destacados pelo autor apresentam elementos que se aproximam dos carvões de Bará. No hibridismo das formas das esculturas, Nazareno busca traçar um diálogo com essas peças pouco conhecidas no imaginário hegemônico ocidental. Do ponto de vista estético, elas apresentam membros deslocados e referências ao antropozoomorfismo, características únicas que apontam para uma liberdade criativa sem a interferência das artes produzidas em outras partes do mundo. Vale ressaltar, nesse sentido, a aproximação dessa produção com as primeiras estatuárias de Exu que se tem notícia no território brasileiro. Além dos próprios estudos em arte, a moda também se faz presente nas obras do artista. Imagens de cultuados fotógrafos como Irving Penn e Richard Avedon, conhecidos pelo domínio do preto e branco, são referenciadas na série. De Penn, as mãos do músico Miles Davis são inspiração máxima. No gesto que imita o toque de um instrumento, produzidas para o álbum Tutu (1986), o fotógrafo realça a força do corpo do músico e suas marcas do tempo, capturadas no preto e branco demasiadamente marcado.
Em outro aspecto, a alta costura de importantes casas de moda europeias é de interesse para a obra. Os voluptuosos vestidos e adornos surgem como características das indumentárias dos orixás. Elevando à máxima a beleza desses vestuários, o artista busca desmistificar qualquer conotação negativa com que as entidades do panteão iorubano foram mencionadas ao longo de décadas, principalmente pelo neocolonialismo e pelo neopentecostalismo que insistiram (e insistem) em empregar diversos tipos de violências contra as religiões de matriz africana.
Tal como uma metalinguagem, a dança também marca presença nos desenhos de Bará. Foi assistindo ao espetáculo Gira, do grupo de dança mineiro Corpo, que Gustavo Nazareno se viu extasiado pela potência dos passos, pela força dos corpos e pela complexidade da coreografia que parecia ter sido construída em uma gira de Exu. Não por acaso, as imagens deste livro dançam em suas páginas. Alocados sem um contexto temporal, os desenhos de Bará evocam uma dança para Exu, saudando-o. Seja no íntimo ou no coletivo, a obra estabelece suas próprias relações com o que se propõe, construindo uma genealogia de imagens que ultrapassa suas próprias referências ao imaginar rígidos traços do carvão em constante movimento de oferenda.

Gustavo Nazareno Autodidata, o artista mineiro vem desenvolvendo uma prática guiada pela pintura a óleo e pelo desenho em carvão. Sua pesquisa é influenciada pelo panteão iorubá afro-brasileiro, que se manifesta com toda a sua força mítica no campo pictórico. A obra de Nazareno parte de um minucioso estudo da anatomia humana e de investigações em torno das poéticas e políticas do corpo. As referências que articula transitam pela iconografia renascentista e barroca, bem como pela história da moda e seus desdobramentos contemporâneos.
Deri Andrade É pesquisador, curador e jornalista. Mestrando em Estética e História da Arte e graduado em Jornalismo, possui especialização em Cultura, Educação e Relações Étnico-raciais pela Universidade de São Paulo. É criador do Projeto Afro, plataforma virtual que mapeia a atuação de artistas negros em todo o território nacional. Com passagens pelo Museu de Arte Moderna de São Paulo, Unibes Cultural e Instituto Brincante (São Paulo), atua desde 2021 como curador assistente do Instituto Inhotim (Brumadinho).
Danny Dunson É historiador da arte, curador e escritor. Formado em História da Arte pela Universidade de Illinois (Chicago), recebeu a bolsa Fulbright (Gana, 2016-2017). É fundador do Legacy Brothers Lab, uma consultoria de desenvolvimento artístico que visa preparar artistas emergentes de comunidades desprivilegiadas a entrar no mundo da arte, por meio de bolsas destinadas a custear estúdios, materiais e despesas de subsistência. É diretor de assuntos curatoriais do The DuSable Black History Museum and Education Center (Chicago).