O jet-ski e o biscoito de repartição

Uma pessoa não pode se sentir um biscoito de repartição pública. Nem que seja para cumprir uma recomendação dos ministérios da saúde coletiva ou da saúde mental de cada vivente.
O indivíduo vai tomar um café e o biscoito está lá, num estado de quase abandono, pedindo a companhia de uma boca úmida e quente. O cidadão atende ao pedido, quebra o biscoito em pedaços com a mão ou morde bocados pequenos. As mandíbulas transformam aquilo num placebo adocicado. Placebo que aplaca a ansiedade, a fome, enquanto o horário do almoço não chega. Representa a oportunidade de comer algo que está dando sopa. Que dribla a falta de companhia para jantar em casa. Esse tipo de biscoito é também consolo para quem não tem casa. Às vezes você tem a sensação de que ele anda sozinho e se enfia na bolsa do indivíduo à espera do momento mais solitário para ser devorado.
Uma pessoa não pode ser um biscoito inerte na boca aberta do pacote. Não pode dormitar ao lado do café ralo, das caixinhas de chá mais baratas, das formigas que passeiam pelo açúcar. Não pode ser alimento à disposição de quem não quer nada ou não sabe o que quer e come para enganar o tempo.
Melhor do que ser biscoito de repartição facebookiana, no qual se dá uma mordidinha quando aparece na tela, é ser Jet-ski (de pobre). Uma voltinha renovadora nas águas do fim de semana.

A primeira mulher

Foi no Chile que ela olhou uma mulher pela primeira vez. Mirava aqueles lábios de tâmara e sentia arrepios na panturrilha.
Contou isso a uma namorada, anos depois. A namorada respondeu candidamente que seu forte sempre fora criar belas imagens, além de usar a justaposição de palavras vazias para tentar impressionar a interlocutora.

Um padre pop

A moça cheia de destreza burla a segurança desatenta e se joga nos braços do padre-galã. Chora desesperada. Ele a consola. A cabeça dela recosta-se no peito malhado do padre e umedece a camisa feita sob medida para destacar o peitoral maior. A música está terminando e ele precisa decidir como incorporar a moça à performance. Ele fala alguma coisa no ouvido dela. Ela responde outra no ouvido dele, mais calma. Então, ela pega o microfone, segura. Ele, com sorriso fraterno a incentiva a falar.
A moça discursa entre soluços: “padre furustreco, não é justo o que o senhor faz conosco, mulheres de família, contrárias ao aborto, tementes a Deus, à espera de homem-príncipe, gentil e cavalheiro que nos retire a virgindade, tão cara para nós quanto o voto de castidade feito (e mantido) pelo senhor. Padre, o mundo precisa de homens como o senhor, íntegros, verdadeiros e bonitos! O senhor é lindo! É um desperdício que seja padre. O senhor me desculpe pela sinceridade e ousadia, é caso até para pedir perdão a Deus e eu peço; mas, como eu, muitas moças gostariam de ter a chance de desposá-lo, de ter filhos lindos como o senhor.”
O padre sorri um riso premeditadamente tímido. A audiência divide-se nas reações. Muitos acham cômico o depoimento; outros acham inadequado; outros acham que a moça está histérica e precisa de internação ou de casamento. O padre, a princípio condescendente, silencia por alguns segundos, enquanto matuta o seguimento da performance. Resolve direcionar as mãos para o céu (um auxiliar de palco corre para acertar o microfone de boca) e aguarda alguns segundos enquanto a iluminação divina o toma e a plateia se harmoniza, depois exorta: “oh Deus-pai-todo-poderoso, conforte o coração dessa filha aflita para que ela entenda que Deus não escolhe apenas os feios e imperfeitos! Deus também precisa dos belos e perfeitos para realizar suas obras”.
As ovelhas-ovelhas aplaudem em frenesi. Que presença de espírito! Que inteligência e perspicácia do padre-galã! As ovelhas negras, subsumidas no mundo convencional das ovelhas se perguntam, onde, gotas de sabedoria e compaixão no lamaçal do coração narcisicamente humano do padre best(a) seller?

O zelador

Chegava à casa apressada, louca para tirar a fantasia de funcionária pública e vestir a capa de escritora, quando o zelador me intercepta, como se tivesse um envelope dos correios a entregar.
– O Dr. Amaurílio falou que os caras na internet vêm na segunda-feira – Ele insistia em chamar o patrão desse híbrido de Amauri e Maurílio.
– Que bom! Já tem 10 dias que eles estão vindo e nunca chegam – Notando que não havia encomenda alguma, eu armava o passo para ir embora e ele solta essa.
– A mulher foi embora.
– Que mulher?
– A minha, uai!
Num segundo, recupero do escaninho mental do enfado a cara de infelicidade dela, mas fico calada, porque o assunto, para ser sincera, não me interessava. Jacaré, era o apelido dele, percebe que não vou dizer nada, mas não quer deixar escapar meu par de ouvidos e continua.
– Pois é! Ela me largou e agora eu tô solteiro de novo. É, porque ela é a segunda mulher que me larga. Eu sou novo, mas já casei duas vezes. Eu tava solteiro quando arrumei ela. Daqui a pouco arrumo outra. Mulher é que nem banana, dá em penca.
– Ui! Exclamei do fundo da garganta.
– O que foi? Ele pergunta. Tá sentindo alguma coisa?
– Não, nada, não. É que imaginei a penca de bananas caindo em cima da sua cabeça. Faria um estrago feio.
– Olha, a senhora não brinca que a coisa é séria. Quando uma mulher me larga, larga uma vez só, aí “vá se lascar pra lá”! Tem quatro dias que ela foi embora. Levou a menina e tudo. Levou a geladeira, a cama nossa, a cama da menina, a poltrona e o guarda-roupas. O fogão eu não deixei levar, porque fui eu que comprei. Seis bocas! Era o sonho da vida dela. O resto ela já tinha do primeiro casamento mesmo. Sábado já me ligou, cinco vezes. Eu reconheci o número e não atendi. Não falo mais com ela.
Procurando um jeito de encerrar a conversa, eu pergunto: – Mas, e se ela ligou para falar alguma coisa da menina? Vocês não têm uma filha juntos? Ela podia estar precisando de alguma coisa…
– Ela que se dane, dona!
– Mas, e a menina?
– Que se dane, também! Preferiu ficar com a mãe, agora aguente!
– Jacaré, a menina é aquela que eu via no pátio com o carrinho de boneca?
– É.
– Ela deve ter uns seis anos, não é?
– Sete! Já tem sete. É pequenininha, mas já sabe o que quer. Tem vontade própria e resolveu seguir a mãe, não quis ficar comigo.
– Sei. Ele me olha frustrado e pergunta:
– A senhora tá apoiando as duas, é? Mulher é assim mesmo, tudo comparsa umas das outras. Pensei que a senhora, uma mulher estudada, pudesse me entender. Mas, não, nem conhece a mulher e já ficou do lado dela.
– Oh, Jacaré, eu quase não te conheço também!…
– Mas me conhece mais do que conhecia ela. E eu sou moreno, falta pouco para ser moreno como a senhora. Ela era desbotada, quase branca – diz isso emburrado, falta pouco para chorar.
– Olha Jacaré, separação é um troço difícil mesmo! Eu acho que você devia procurar seus amigos para conversar, desabafar.
– Que amigo, Dona? A senhora acha que eu vou chorar dor de corno com colega homem, pra depois todo mundo ficar mangando de mim?
– E deu de chorar as pitangas comigo, Jacaré? Acha que eu tenho tempo?
– É que a senhora é mulher, tá sempre aí, sozinha, parece que só tem a companhia dos livros. Ontem mesmo chegou mais um pacote que eu esqueci de entregar para a senhora. Eu agora tô solteiro… precisando de alguma coisa, é só chamar.

Boleros

Na Vila Planalto, os vizinhos tocavam Fagner dos anos 1970 e a deixavam nostálgica nas tardes ensolaradas de domingo.
Os de agora, do Politeama de Baixo, são mais cruéis. Têm vinis antigos, quase de 78 rotações, e tocam Altemar Dutra, o atemporal, que entre outras lembranças traz a mãe que o escutava aos domingos.
Coitados, eles não têm culpa! Não podem imaginar o quanto os boleros, ainda mais no inverno, cutucam as tristezas de um coração escondido entre livros e um teclado.


Cidinha da Silva (Belo Horizonte, Minas Gerais). Prosadora e dramaturga. Autora de #Parem de nos matar! (crônicas, 2016) e Racismo no Brasil e afetos correlatos (crônicas, 2013), entre outros.

Publicado por:Philos

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Um comentário sobre ldquo;Contos contemporâneos, por Cidinha da Silva

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