Entre as sacudidas do tempo, ela desarruma a memória, catando cacos da infância, abandonados na insubmissão silenciosa de ser ninguém, inexistida no olhar cotidiano daqueles de cor distinta. Enrosca os fios de cabelos crespos na ponta dos dedos num afago, a pálpebra se deita no carinho, um pouco da infância se desencolhe, lembra-se de ir chorando, por ordem da mãe, à casa de dona Raimunda alisar os fios aterrorizantes, era desse jeito que ela falava, do cheiro de coisa queimada, da imagem distorcida no espelho esfumaçado. Magra lembrança de menina, no espaço de guardar recordação, abarrotado de livros que consumia como se entrasse num casulo, aí dentro buscava esperança de ser gente respeitada. Seu pai era funcionário público, mentia ser feliz, salário exato mês a mês, aos domingos futebol, alegria forçada por bebida de álcool, piadas esquecedoras de submissão. A mãe, dona de casa conformada, anseios trancafiados, amedrontada. E Maria, com olhar cheio de rumor, ouvia o que não era dito, doía essa vida no escuro, queria tanta coisa, quis com muita vontade coroar Nossa Senhora, só as meninas de pele clara tinham esse privilégio. Murmurou no ouvido da mãe seu desejo. Essa se desesperou – chega de sofrimento, não vê que nossos representantes são brancos, quer desassossegar nossa vida? – quer mudar o destino das coisas – disse sentenciosamente. Calou-se. Enxotou o mundo que a cercava e, meteu-se por dentro das palavras, alimentava-se das letras e dos sons de atabaques reverenciando divindades negras, nas madrugadas, vindos da ladeira, no entorno da casa, e de lá de dentro, de muito longe, de seus ancestrais. Ela tinha um olhar aguçado, enxergava o que muitos fingiam não ver, pode até ser que ficaram cegos; assim não sofriam as dores da discriminação. Depois de ver o olhar de pavor da mãe, só se manifestou mais uma vez, quando quis na escola participar da homenagem a Zumbi dos Palmares; a professora disse-lhe que era inadequada e pintou as meninas brancas de preto, ainda teve que assistir pateticamente a isso, forçada pela mãe. Continuou sendo amparada pelos livros e os sonhos. Certo dia, antes de realizar um concurso público, sonhou com uma santa negra de cabelos crespos e ela, linda, colocou a coroa. Era Oxum, divindade africana. Parecia aviso, ela se classificou em primeiro lugar, uma afronta – era a voz velada dos concorrentes da classe dominante. Que luta para tomar posse no cargo disputado pelos brancos. Ela sabia só haver uma forma de passar por essa barreira, capacitação; fez mestrado, doutorado em outros países, ocupando espaços, saiu do casulo. Viagens, paleslestras, convites para eventos vedados para os de sua cor, sendo que sua apresentação era diferenciada, essa é doutora Maria, com curso disso, cursos daquilo, o seu curriculum completo justificava a presença em tais lugares. Não gostava de participar desse mundo em que os de sua raça eram os serviçais, andavam pela sala com andar imponente, roupas brancas, envergando uma bandeja na mão, pareciam equilibristas. Preferia o teatro, caprichava na roupa, assim evitava o olhar desconfiado do porteiro geralmente negro que sorria bobamente para os brancos e diante dela conferia documentos, mudava o semblante; tinha essa imagem descontruída de sua raça. Maria teve alguns romances, sonhou com casamento, filhos, mas não vingaram. Até que conheceu um escritor e professor. A vida ganhou cumplicidade no outro, respeito, diálogos pensados e esquecidos renasceram, acordando o encanto já quase desistido da vida. No início, o amou nas palavras; as defesas continuavam lá dentro escondidas, num canto secreto da infância. A sinceridade de seu amor diluiu os nós, o olhar de sentença da mãe, o cheiro de cabelo queimado, ressentimentos com a vida. Com ele voltou à terra natal e conheceu terreiros de candomblé. Perdeu o fôlego quando apareceu Oxum, a orixá do sonho, igualzinha, sem tirar nem pôr. Aproximou-se num abraço e, disse-lhe que naquela noite a protegeu da trama que havia contra a sua entrada na magistratura. – Acompanhei tudo minha filha e impedi que eles tirassem o seu direito de exercer o cargo. – Mais quá… Foi tanta coisa nessa vida, que a gente teve que engolir; fingir que não viu, nem ouviu, que terminou por acreditar no que eles diziam – disse dona Roxa, uma velha tia de Maria, que se inclinou para ela com olhar de coragem e resistência – estava escrito o encontro de você com Oxum, ela sempre esteve do seu lado, mesmo que você não soubesse. – Mas, me diga minha filha você nunca sentiu nada? A memória aconchegou-se rapidamente nas madrugadas ao som dos atabaques. Naquele instante, viu todos os sonhos à luz do dia. Desarmou-se. Sorriu verdadeiramente.
Aidil Araujo Lima (Bahia, 1958). Contista, com diversos textos premiados e publicados em Antologia. Participou da FLICA em 2016, no Mapa da Palavra pela Fundação Cultural do Estado da Bahia em roda de conversas com outros escritores. Publicação do livro – Mulheres Sagradas, agosto 2017.
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