J. Pavel Herrera é um artista afro-caribenho imigrante que nasceu e cresceu em  Cuba e que reside desde 2016 no Brasil. Dito isso, ao olhar sua obra é possível  pensar nos demarcadores geográficos, sociais e raciais que atravessam sua  produção, porque mesmo sem abordar tais questões de forma direta, isto é parte  intrínseca de sua subjetividade. Uma vez que é impossível separar a obra de seu  autor e vice-versa, como coloca o próprio, sua pesquisa se volta para a insularidade  como fenômeno geopolítico, os processos migratórios e a memória.

Assim, por mais encantadoras e belas que sejam suas pinturas, nota-se a presença  latente de um mistério, o mesmo que atravessa o Atlântico. Por uma linha  imaginária, é possível traçar retas que conectam Cuba ao Saara Ocidental e o litoral  paulista à Namíbia. Pois, quem mergulha seus olhos neste oceano, se depara com  os vestígios da diáspora africana, já que é inevitável banhar-se nestas águas sem  cruzar com suas histórias.

Isso porque o mar como elemento puro não oferece um referente geográfico, de  modo que pode ser visto apenas como uma imensidão azul. Mas em seu nível  simbólico, este mesmo mar quando lido pelos demarcadores que atravessam a  biografia do autor, evoca toda uma narrativa diaspórica e imigracional. Ou seja,  não existe uma leitura única sobre sua obra e sim a possibilidade de se embrenhar  nas profundezas do “eu” e/ou do “nós”.

É pela crítica sútil que o artista atua: primeiro tocando o espectador em sua retina,  para então convidá-lo a ver mais longe, para além do horizonte e de onde a vista  alcança. Por meio deste exercício de expansão cognitiva próprio da arte, ele é  enlevado a olhar para sua própria paisagem interna e se deparar com aquilo que  está tanto fora, como dentro de si. A profundidade com que cada qual consegue  atingir, varia conforme a disposição da contemplação.

Ao alcançar a última camada, fruto da sobreposição das inúmeras velaturas  subjetivas da tinta à óleo sobre tela, a pintura de J. Pavel Herrera atinge aquilo que se pode chamar de sublime. Deste momento em diante, se instaura uma relação  sensível entre obra e espectador. A observação prazerosa que a paisagem pictórica  traz ao outro é capaz de aproximá-lo de sua relação com a natureza, permitindo a  este uma tomada de consciência de si como parte do todo. A experiência alcançada  é a experiência do existir.

A sensação provocada pela paisagem, sobretudo pela visualidade infinda no  horizonte, gera um sentimento de liberdade, ao mesmo tempo de pertencimento  no mundo. É com este devir que os trabalhos aqui expostos atuam em enleve:  encantamento, êxtase, reflexão e suspensão. Num movimento silencioso, cada  espectador encontra em si mesmo, em suas marcas pessoais, uma leitura específica  sobre cada pintura. A identificação com determinada paisagem – seja esta uma  montanha, um redemoinho, um campo de nuvens, um mar vermelho, uma praia  nevada, um horizonte a céu aberto – varia conforme o estado de espírito de quem a  vê.

Ao passo que cada paisagem provoca uma experiência única, a variação cromática  utilizada pelo artista potencializa ainda mais esta conexão entre pintura e  espectador. As nuances de intensidade vibrátil provocadas pela multiplicidade da  paleta reagem de forma própria e individual a cada um. A saturação ou diluição da  coloração, bem como sua proximidade com tons quentes ou frios, corroboram o  despertar das sensações. Cor e paisagem são cúmplices nesta criação polifônica de  metáforas visuais.

Apresentando uma multiplicidade de metáforas visuais, Enleve é também um  convite à tomada de consciência de que a ausência de horizonte e da natureza  compromete diretamente a qualidade da vida física e psíquica da humanidade.  Cumprindo um papel social e cultural, as pinturas de J. Pavel Herrera traçam novos  caminhos para se entrar em contato com aquilo que habita o âmago de cada um de  nós.

Paula Borghi
Serra Grande, Julho de 2023


J. Pavel Herrera
J. Pavel Herrera

Licenciado em Educação das Artes Plásticas e mestre em Artes Visuais pela UNICAMP, foi revelado no cenário artístico de seu país em 2014, com a exposição “Maldita Circunstância”, realizada na Casa Museu Oswaldo Guayasamín. Nos últimos sete anos Pavel tem apresentado ao público brasileiro sua poética singular, de forte personalidade e impactante subjetividade.

Amparado em uma sublime criação pictórica – um universo onírico de paisagens que provocam interpretações livres e pessoais – Pavel tem desenvolvido uma concisa investigação sobre a insularidade como fenômeno geopolítico, provocando reflexões sobre processos migratórios, memória e pertencimento.

O vermelho é uma cor que apanha VI (2023)
O vermelho é uma cor que apanha VI (2023)

A constatação dessa unidade discursiva e de sua concisão criativa pode ser vista a partir de 19 de agosto, quando será aberta ao público “Enleve”, a primeira exposição individual de Pavel na Galeria Contempo, que representa o artista. Reunindo cerca de 20 pinturas produzidas entre 2014 e 2023, a maioria em óleo sobre tela, a mostra tem curadoria de Paula Borghi, que enfatiza o caráter político manifestado de forma elíptica e metafórica na criação de Pavel.

Em outubro de 2022, ao lado de outros quatro artistas, Ana Durães, Luiz Dolino, Rubens Ianelli e Tarm, Pavel participou da mostra coletiva “Paisagem Brasileira Contemporânea”, organizada pela Contempo na Casa de America, em Madri, na Espanha. Foi então que Monica Felmanas, sócia-fundadora e curadora da Contempo, teve a constatação de que o passo adiante seria idealizar uma primeira retrospectiva do artista caribenho.

“O trabalho do Pavel é único e universal. Ele é um artista cubano, e sua história é parte da história do Brasil e do momento atual do mundo. Pavel é mais um imigrante em busca de melhores condições de vida. Não é fácil deixar seu país, família, amigos e começar uma nova vida. E aqui ele fincou raízes, constituiu sua família e vive do seu trabalho. Pavel tornou-se um brasileiro, e somos apaixonados por seu trabalho, dedicação e talento. Ele é um exemplo a seguir” Monica Felmanas

Nona exposição individual de Pavel e a sexta realizada por ele no Brasil, “Enleve” rompe um hiato de quatro anos desde suas últimas mostras, “Poemas Mal Escritos” e “Lembranças e Utopias” (2019), intervalo agravado pelo maior drama coletivo vivenciado pela humanidade neste século, como destaca o artista.

“Cada projeto expositivo é uma experiência nova, um desafio. Enleve é minha primeira exposição depois da pandemia, momento que deixou paralisado muitos projetos e provocou um acúmulo de trabalho para instituições e galerias. Cada lugar tem sua própria e individual forma de relação obra/espaço expositivo. Para mim, esse momento é sempre um novo desafio, assim como é desafiador conectar e estabelecer um diálogo com o público a partir das narrativas presentes na exposição. Enleve é também uma forma de voltar a olhar para minha produção no meio da diversidade de propostas e poéticas dos artistas representados pela Contempo”, conclui Pavel.


Serviço: Enleve – exposição individual de J. Pavel Herrera na Galeria Contempo, de 19 de agosto a 2 de setembro. Abertura 19 de agosto (sábado), das 10h às 16h, na Alameda Gabriel Monteiro da Silva, 1644, São Paulo.

Publicado por:Philos

A revista das latinidades

O que você achou dessa leitura?