O que se pode dizer de um pintor, de um escritor é infinito. É como um risco de luz feito no espaço e que vai iluminando espaços que não pertencem às trevas. Têm uma luz própria mesmo antes de serem iluminados.”1
Agustina Bessa-Luís, trecho de As meninas.

Na casa da avó, um único porta retrato continha a fotografia da bisavó que zarpara do Porto para o Brasil em um navio destinado ao Recife e cinco décadas no Rio de Janeiro, sem passagem de retorno à sua terra natal. A bisavó morou, por um bom tempo, na Ilha do Governador à beira-mar, percebendo as ondas em sentido de regresso, as visões de embarcações que cruzavam a esfera da terra e uma sincera desconfiança de que a vida poderia cintilar sob o sol de ouro tropical antes que fosse destituída das suas joias. Quando a avó morreu, pediu para que as suas cinzas se juntassem aquele pedaço de mar. Na casa da avó, eram os galos que ocupavam as tapeçarias ou tomavam forma em objetos de porcelana, plástico ou feltro, um galo, em particular, indicava as mudanças de temperatura através das cores sensíveis a meteorologia da antiga São Sebastião. Pelos cantos escuros da casa quase sem sombras e invadida pelo breu que escoava nos corredores, um enigma de país distante vagava, um mistério que veio a ser desvendado pelos romances na pena da grande Agustina Bessa-Luís.

Desde a primeira visita, descubro no Porto fragmentos minerais que me faltam. Na cidade austera e sombria, à guisa da casa da avó, as construções maciças garantem que, onde até a neblina se faz maciça, reserva-se algo da memória de sangue mencionada por Agustina em uma conversa com o realizador Manoel de Oliveira. A bifurcação das memórias coincide em espaço e tempo. A criação artística autêntica, e nisto ouso incluir a vida, deve ser a união de elementos separados, segundo Coleridge. Andar é diferente do que sentir o chão debaixo dos seus pés. “Como hei de pintar o chão?”1 Num percurso de curiosidade e afeto, caminhei pelo centro do Porto, investigando pelo comércio o paradeiro dos donos da farmácia, a família da tia Júlia de cuja beleza semelhante a da bisavó ouvira falar e viera constatar. Como era bonita a minha tia octogenária, o seu rosto, as suas mãos delicadas. A combinação de elementos díspares coloca-nos na rota por novos centros de gravidade.

No legado de Agustina, encontro o elo com a geografia do passado, os seus romances permitem que me aproxime de um mundo ao qual sempre pertenci pela memória de sangue e o qual reconstruo pela memória de vida. Assim como a bisavó e a avó, mantenho-me na margem do Atlântico, território de exílio imigrante, de barcos que flutuam sem encostar n´água, dos dolorimentos, dos eixos que gravitam inesperadamente. Gente mareante regida pelo Atlântico de raras ilhas, se houver algo a os unir pois que seja sangue e mar. Nos espaços entre as palavras ou as nuvens chumbadas sobre o Douro e a Foz, os personagens da Agustina criam e recriam famílias erguidas a partir de indivíduos de países decifráveis pela literatura e a saudade. Havendo culminado o seu sucesso com o romance “A Sibila”, Agustina comparava-se a Dostoiévski ao ser indagada por uma referência para a sua obra. As suas letras equiparáveis não só as de Dostoiévski como de Tolstói, tem permitido aos seus leitores, por vezes escassos, desde a década de 1950, penetrar na humanidade e desvirginar a tensão superficial que separa o abismo aquático do ar. “A desgraça dela é a de não conhecer nada de superior a um ser humano” diz Sören2. Agustina, entretanto, fez desta desgraça a sua matéria prima, aperfeiçoando-a de modo a confundir realidade e ficção e, por fim, anulando a realidade e fazendo vingar a ficção. Expansiva, Agustina presenteou Portugal com uma vastidão da Rússia.

O profundo conhecimento da humanidade não impediu que Agustina distribuísse sorrisos de infância em vida adulta e uma alegria motivada pela gratidão em estar viva. Agustina descrevia-se como uma pessoa alegre (quantas pessoas ao redor se confessam alegres diante da câmara clara?). Cercada pela escuridão da casa, a minha avó era de alma alegre, seu sorriso desperta a eternidade das manhãs. Livros, sorrisos, vestidos ou o prêmio Nobel, Agustina daria preferência a um belo vestido (“os portugueses sendo mais orgulhosos do que invejosos”, menciona ela em conversa), o tecido bordado pelas artesãs portuenses, dessas que partiram e zanzam pelas ruas de uma cidadela outrora invicta, com as mãos em concha, esvaziadas de seus bordados e ouvindo o chamamento da Fonte da Moura3.

Sobre a Fonte, a fonte original da criação, Agustina punha em questão a história imposta sobre a supremacia temporal de Adão. Agustina acreditava que Eva antecedera Adão, assim reafirmando a sua personalidade de escritora indomável e a função importante dos antepassados. A própria mãe de Jesus deveria ser de nascimento privilegiado, entendendo-se pela fortuna de seu pai. Num processo dinâmico e desprovido do sobrenatural, Agustina usou e abusou da liberdade que os romances oferecem, libertou personagens, expôs as dissimulações, inclusive como no caso de Camilo4 quando escreveu que “era inútil amá-lo, porque nele tudo era dissimulação, até o amor” para, em seguida completar “Camilo não é só inferior; é mau”. A escritora não poupou as traições e as ultrajantes violências no seio das famílias, de uma brutalidade chocante, permitindo-se navegar por digressões filosóficas5 e salientar a crueza do perverso, gerando polêmicas equivocadas no tocante à imagem pública da autora.

Agustina logrou criar livros sem os infernais parâmetros contemporâneos, forças vingativas e ameaçadoras à integridade do artista, inviabilizadoras do potencial da arte em todos os seus possíveis anéis. “Não há arte patriótica nem ciência patriótica”, reflexão de Goethe citada por Agustina em “As Meninas”. Se a liberdade e a rebeldia ficarem como lições da escritora maior em língua portuguesa no século XX, podemos nos encontrar no espelho mágico. Optando pelo irracional e a intuição, Agustina acreditava no controle da luz universal das coisas: “eu creio amar” é mais forte do que “eu amo”6. Nem todos os escritores de sucesso possuem intuição, o conto ordinário é facilmente feito. A fita de cinema nem sempre a agradava e as suas obras adaptadas nos filmes por Manoel de Oliveira geraram desconfortos em suas colaborações.

Em entrevista, Agustina revelou que, como a maioria das mulheres, escrevia sem dar o devido valor ao que produzia, à laia dos deveres domésticos. As mulheres são treinadas para se desdenharem. Com idêntica entonação da voz, vaticinou o fim da literatura como a conhecemos, a menos que o ramo busque salvação na ciência. Agustina escrevia sem interrupções, a música sendo um ruído incômodo, a distraí-la do conteúdo dos estados mentais, do impulso de fabricar imagens. A atividade do gênio exige estabelecer a reconciliação entre o externo e o interior, o consciente e o inconsciente, cada um ao seu jeito; a dificuldade de pensar enquanto a música toca.

Para aqueles não tão familiarizados com a biografia de Maria Agustina, evoca-se a versão pela qual conheceu o seu marido, António Luís. Aos 22 anos, Agustina colocara um anúncio de jornal a procura de uma pessoa culta com quem se pudesse corresponder. Das trinta cartas recebidas, contestou cinco e casou-se com o primeiro a lhe dar um beijo. Considerava o seu casamento tão harmônico que dizia podiam chamar-se o casal Garcia. É curioso que, no princípio, António Luís submetia com o seu nome os contos de Agustina a concursos, os quais ganhava todos. Era ele quem batia os textos dela à máquina. “A utopia é um dado essencial para compreenderem-se as mulheres”, dizia ela havendo encontrado no companheiro, o seu suporte.

Nesta última terça feira, foi dia de luto oficial pela escritora Maria Agustina Bessa-Luís, reclusa desde 2006 devido a um acidente cardiovascular, e na mesma data, o meu aniversário, exigindo a conciliação de dois estados da alma. Os lutos se sucedem por obra do acaso, impondo-se, e a saudade, matéria prima da memória, persiste em sua potência cósmica. Agustina e seu fôlego literário7 conquistam o infinito de maneira essencialmente finita e humana, uma mulher que agora avança pelas vias da imortalidade sem levar-se a sério em demasia, para não inferiorizar-se diante da sua condição. Agustina merece ser admirada por isso e tão mais. Leiam-na!


Kátia Bandeira de Mello-Gerlach, natural do Rio de Janeiro e radicada em Nova York, formou-se em Direito pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). É mestre em Direito Internacional Privado pela Universidade de Londres e pela NYU School of Law, e professora de Direito na Fundação Getúlio Vargas. Corpo docente da Universidad Desconocida do Brooklyn sob a reitoria de Enrique Villa-Matas.  Participação no Disquiet International Program em Lisboa através de estipêndio pela Fundação Luso-Americana, FLAD. Agraciada pelo programa da New York Foundation for the Arts, Artes Literárias.  Publica no Jornal Rascunho e na Revista Cenas (Centro Cultural Raimundo Carrero).  Colunista da Philos – Revista de Literatura da União Latina. Colisões BESTIAIS (Particula)res pela Editora Oitoemeio (Rio de Janeiro) é o seu terceiro livro de contos. Antes, publicou Forrageiras de Jade (2009) e Forasteiros (2013), editados pelo Projeto Dulcineia Catadora.  Lançou Jogos (Ben)ditos e Folias (Mal)ditas pela Editora Oito e Meio oficialmente na Flipoços em Maio de 2017.


bibliografia

  • 1 Ibis.
  • 2 “Estados Eróticos Imediatos de Sören Kiergegard”, por Agustina Bessa-Luís, Guimarães Editores.
  • 3 “Lendas do Porto”, por Joel Cleto, Verso da História.
  • 4 Camilo Castelo Branco em “Camilo, Gênio e Figura”, por Agustina Bessa-Luís, Casa das Letras.
  • 5 Exemplo maior desta liberdade transgressora no gênero: “A Ronda da Noite”, por Agustina Bessa-Luís, Guimarães Editores.
  • 6 “As Meninas”, Ibis.
  • 7 “O fôlego é portanto essencial para fazer abrir as porta e ter acesso à eternidade”, por Agustina Bessa-Luís em “As Meninas”, obra em homenagem a Paula Rego.
Publicado por:Philos

A revista das latinidades